Joel Bakan , professor de Direito da Universidade de British Columbia escreveu um livro chamado A Corporação- A Busca Patológica por Lucro e Poder,lançado em 2004 e editado pela primeira vez no Brasil em fevereiro de 2008 , que se transformou em filme com 2 DVDs, sendo um o documentário e outro uma serie de entrevistas com os participantes do mesmo aprofundando os temas abordados no filme.
Neste livro Bakan faz uma profunda analise do poder que as corporações adquiriram nos últimos 150 anos.
No capitulo 1, pagina 6 lê-se:
Durante o final do século XVII e o começo do século XVIII, corretores de ações conhecidos como “intermediários” rondavam os cafés de má reputação da Exchange Alley londrina, um labirinto de vielas entre a Lombard Street, a Cornhill e a Birchin Lane, à procura de crédulos investidores para quem pudessem vender cotas de companhias fantasmas. Tais companhias prosperaram por pouco tempo, alimentadas pela especulação, e logo entraram em falência. Entre 1690 e 1695, 93 dessas companhias estavam em funcionamento. Em 1698, sobravam apenas 23. Em 1696, os membros do comercio inglês informaram que a forma cooperativa tinha sido “completamente pervertida” pela venda de ações a “homens ignorantes, seduzidos pela reputação inventada e divulgada com habilidade, dada a prosperidade das ações”. Em 1720, o Parlamento inglês, farto da epidemia de travessuras que infestava a Exchange Alley, baniu a corporação ( com algumas exceções), aprovando o Buble Act – lei que tornou crime a criação de uma companhia “que se atrever a ser uma entidade corporativa” e a emissão de ações transferíveis sem autorização legal”.
Hoje em dia, na esteira de escândalos corporativos como a falência da ENRON, em 2001/2002 , o banimento da forma corporativa é impensável. Instituição recém-nascida que pode ser banida com um golpe de uma caneta legislativa em 1720, a corporação hoje domina a sociedade e o governo. Como ela pôde se tornar tão poderosa?
O talento da corporação como forma de negócio e a razão de seu notável crescimento ao longo dos três últimos séculos foi, e é, sua capacidade de combinar o capital, e portanto o poder econômico, de um ilimitado numero de pessoas. As sociedades anônimas surgiram no século XVI quando ficou claro que as sociedades limitadas, restritas a captar dinheiro de poucas pessoas que podiam administrar um negócio juntas, eram inadequadas para financiar os novos, porém poucos empreendimentos de grande escala da nascente industrialização.
As corporações começaram a proliferar durante o final do século XVII, e o total de investimentos em sociedades anônimas dobrou à medida que essa forma de negócio passou a ser uma forma popular de financiar os empreendimentos coloniais. A sociedade limitada ainda era a forma de organização comercial predominante, mas pouco a pouco a corporação ganharia posições até finalmente ultrapassá-la.
Em 1712, Thomas Newcomen inventou uma maquina a vapor para bombear água de uma mina de carvão e involuntariamente deu inicio à revolução industrial. Durante o século seguinte, a energia a vapor impulsionou o desenvolvimento da indústria de grande escala na Inglaterra e nos Estados Unidos.
As corporações multiplicaram-se no momento em que esses novos empreendimentos de grande escala exigiram mais capital investido do que a sociedade limitada podia levantar. Na América do Norte pós-revolução, entre os anos de 1781 e 1790, o numero de corporações cresceu dez vezes, de 33 para 328.Também na Inglaterra, com a revogação do Bubble Act em 1825 e a corporação novamente legalizada, o numero de corporações cresceu de modo extraordinário e as transações escusas e fraudes voltaram a ser comuns no mundo dos negócios.
Sociedades Anônimas logo se tornaram “a moda do século”, e apesar de tudo, estava pronta para começar sua ascensão rumo ao domínio sobre a economia e a sociedade. E faria isso com a ajuda de uma nova maquina a vapor: a locomotiva.
Os barões das ferrovias norte-americanas do século XIX ( leia-se Edward Harriman, financiado por Kuhn, Loeb and Company, liderado por Jacob Shiff), considerados celebridades por alguns e vilões por outros, foram os verdadeiros criadores da era da moderna corporação. Como as ferrovias eram empreendimentos monumentais e exigiam enormes quantidades de investimento de capital – para assentar trilhos, fabricar a frota e operar e manter os sistemas – rapidamente a indústria começou a confiar na forma corporativa para financiar suas operações. Nos Estados Unidos, a construção de ferrovias teve seu ápice nos anos 1850 e também após a Guerra Civil, com mais de 150 mil quilômetros de trilhos instalados entre 1865 e 1885. Conforme a atividade crescia, o numero de corporações também aumentava. Na Inglaterra não foi diferente. Entre 1825 e 1849, a quantidade de capital levantado pelas ferrovias, a maioria por meio de sociedades anônimas, aumentou de 200 mil para 230 milhões de libras, mais de mil vezes.
As ferrovias, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, exigiam mais investimento de capital do que poderia ser oferecido pelo círculo relativamente pequeno de homens ricos que havia investido nas corporações no começo do século XIX nesses países. Por volta da metade do século, com ações de ferrovias inundando o mercado dos dois países, as pessoas da classe media começaram, pela primeira vez, a investir em cotas corporativas.
No entanto, restava uma barreira para a ampla participação pública no mercado de ações: não importava o quanto, muito ou pouco, uma pessoa investisse, era pessoalmente responsável, sem restrições, pelas dívidas da companhia. As casas dos investidores, suas economias e outros ativos pessoais poderiam ser reclamados pelos credores se a companhia falisse, o que significava que a pessoa estava arriscada à ruína financeira pelo simples fato de ser dona das ações de uma companhia. Ser acionista não seria uma opção atraente para o publico em geral enquanto esse risco não fosse eliminado. Na metade do século XIX, as lideranças empresariais e políticas defenderam amplamente a mudança para que a lei passasse a limitar a responsabilidade dos acionistas ao valor que tivessem investido na companhia. Se uma pessoa comprasse 100 libras em cotas, ele ou ela não seria responsável por nada além disso, não importando o que acontecesse com a companhia. Defensores da “responsabilidade limitada”, como o conceito ficou conhecido, o defendiam como sendo necessário para atrair os investidores da classe media para o mercado de ações.
O fim do conflito de classes por meio da cooptação de trabalhadores para o sistema capitalista, um objetivo que o comitê ( Select Committee on Partnerships, Inglaterra, 1851) só mencionou mais tarde e de forma muito sutil, foi oferecido como justificativa política para a responsabilidade limitada, junto com a justificativa econômica de expansão do conjunto de potenciais investidores.
Mas a responsabilidade limitada tinha seus opositores. Nos dois lados do Atlântico, críticos opuseram-se a ela por motivos morais. Como ela permitia que os investidores escapassem ilesos dos erros de suas companhias, os críticos acreditavam que isso minaria a responsabilidade moral pessoal, um valor que tinha governado o mundo comercial por séculos. Com a instituição da responsabilidade limitada, os investidores poderiam levianamente não se preocupar com a sorte de suas companhias, tal como Mr. Goldbury, um investidor fictício, explicou na afiada sátira musical de Gilbert e Sullivan, Utopia Ltd:
Embora seja Rothschild, em plena capacidade,
Como companhia você é de chorar,
Mas o liquidante diz: ” Não se preocupe, não precisa pagar”,
E aí outra Companhia amanhã você vai começar!
As pessoas preocupavam-se com o fato de que a responsabilidade limitada iria, como disse um parlamentar na Inglaterra, ferir ” o primeiro e mais natural principio da legislação comercial […] em que cada homem é obrigado a pagar as dividas que contraiu, enquanto puder fazê-lo” e isso iria ” permitir que as pessoas se envolvessem em negócios com uma limitada chance de perda, mas com uma ilimitada chance de ganho”, encorajando assim ” um sistema de especulação agressiva e imprudente”.
Apesar de tais objeções, a responsabilidade limitada foi introduzida na lei das corporações, na Inglaterra em 1856, e nos Estados Unidos ao longo do final do século XIX ( ainda que em momentos diferentes em diferentes estados). Com a remoção do risco do investimento em ações, pelo menos em termos de quanto dinheiro os investidores poderiam ser forçados a perder, o caminho estava aberto para a participação publica no mercado de ações e para investidores diversificarem seus títulos. Ainda assim, as corporações de capital aberto ao investimento publico eram um tanto raras nos Estados Unidos até o final do século XIX. Fora da indústria ferroviária, havia uma tendência de as principais companhias serem empresas familiares, e se existissem cotas, elas eram comercializadas pessoalmente, não no mercado de ações. Nos primeiros anos do século XX, no entanto, grandes corporações de capital aberto ao investimento publico começaram a se tornar lugar-comum no cenário econômico. Em apenas duas décadas, começando nos anos 1890, a corporação passou por uma transformação revolucionaria.
Tudo começou quando os estados norte-americanos de Nova Jersey e Delaware empenharam-se em atrair negócios corporativos valiosos para suas jurisdições desfazendo-se de restrições nada populares que constavam de suas leis para corporações. Entre outras coisas, eles:
- Revogaram as leis que exigiam que negócios fossem incorporados apenas por motivos restritos, que permanecessem apenas por um tempo limitado e que operassem apenas em determinados lugares.
- Amenizaram substancialmente o controle sobre fusões e aquisições.
- Aboliram a regra de que uma companhia não podia ter ações de outra companhia.
Outros estados, sem querer sair perdendo na corrida pelos negócios incorporados, logo fizeram revisões semelhantes em suas leis. As mudanças impulsionaram uma enxurrada de incorporações, pois as empresas buscavam novas liberdades e poderes que a incorporação poderia lhes garantir. Logo, no entanto, com o fim das restrições mais significativas sobre fusões e aquisições, um grande numero de pequenas e medias corporações foi rapidamente absorvido por um pequeno numero de gigantescas corporações – 1800 corporações tornaram-se 157 entre os anos de 1898 e 1904. Em menos de uma década, a economia norte-americana deixou de ser uma economia em que as empresas de um ou poucos proprietários competiam livremente entre si para ser dominada por um numero pequeno de organizações, cada uma de propriedade de muitos acionistas. A era do capitalismo corporativo tinha começado.
Nas grandes corporações, os acionistas tinham pouco, ou nenhum poder e controle. No começo do século XX, as corporações eram comumente a combinação de milhares, as vezes centenas de milhares, de anônimos acionistas espalhados. Sem poderem influenciar as decisões administrativas como indivíduos, pois seu poder era muito diluído, eles também estavam muito dispersos para agir coletivamente. A consequente perda de poder e controle por parte dos acionistas das grandes corporações virou lucro para os administradores.
Diferente da sociedade limitada , na qual um grupo relativamente pequeno de homens, unidos por lealdade pessoal e confiança mutua, juntava seus recursos para montar negócios em que eram proprietários e administradores, a corporação separou a propriedade da administração – um grupo de pessoas, diretores e gerentes, administrava a empresa, enquanto outro grupo, os acionistas, era proprietário. Em A Riqueza das Nações, célebre livro de Adam Smith,publicado em 1776, ele já alertava que, o fato de os administradores não serem confiáveis para lidar “com o dinheiro dos outros” quando os negócios fossem organizados como corporações, o resultado inevitável seria “negligencia e esbanjamento”. Quando ele escreveu estas palavras, a corporação estava proibida na Inglaterra, havia mais de 50 anos.
Os acionistas por todos os motivos práticos, tinham desaparecido das corporações das quais eram proprietários. Com o desaparecimento dos acionistas de fato, pessoas reais, das corporações, a lei tinha que achar alguém, alguma outra pessoa, para assumir os direitos legais e as obrigações que as empresas precisavam para operar na economia. Essa “pessoa” acabou sendo a própria corporação.
No final do século XIX, por meio de uma estranha alquimia legal, os tribunais transformaram a corporação em uma “pessoa”, com identidade própria, separada das pessoas de carne e osso que eram seus proprietários e administradores e ganhou poderes, assim como uma pessoa real, de fazer negócios em seu nome, adquirir títulos, empregar trabalhadores, pagar impostos e ir ao tribunal para garantir seus direitos e defender suas ações.
Agora vista como uma entidade, “nem imaginaria ou ficcional, mas real, não artificial, mas natural”, como foi descrita por um professor de Direito em 1911, a corporação foi reconcebida como um ser livre e independente. Era o fim da centenária “teoria do privilegio”, que concebeu as corporações como instrumentos da política governamental e como dependentes das instituições governamentais para serem criadas e poderem funcionar.
A lógica era a de que, por terem sido concebidas como entidades naturais análogas aos seres humanos, as corporações deveriam ser criadas como indivíduos livres, uma lógica que impulsionou as iniciativas em Nova Jersey e Delaware, assim como a decisão de 1886 da Suprema Corte que dizia que, por serem “pessoas”, as corporações deveriam ser protegidas pelos direitos garantidos pela Décima Quarta Emenda de “um processo legal” e “igual proteção das leis”, direitos originalmente incluídos na Constituição para proteger escravos libertos.
A corporação sofreu sua primeira grande crise com o crescimento dos movimentos de fusão no começo do século XX, quando, pela primeira vez, os norte-americanos perceberam que as corporações, agora enormes bestas, ameaçavam suas instituições sociais e seus governos. As corporações não eram apenas vistas por muitos como leviatãs desalmados – insensíveis, impessoais e amorais. De repente, elas estavam vulneráveis ao descontentamento popular e à divergência organizada, quando os clamores por mais regulação por parte do governo e até mesmo seu desmantelamento tornaram-se cada vez mais comuns. Lideres empresariais e relações publicas logo perceberam que os novos poderes e privilégios da instituição exigiam novas estratégias de relações publicas.
Em 1908, a AT&T, uma das maiores corporações da época e controladora da Bell System, tinha o monopólio dos serviços de telefonia nos Estados Unidos e lançou uma campanha publicitária, a primeira do gênero, cujo objetivo era convencer um publico cético a gostar da companhia e aceitá-la. Mais ou menos da mesma maneira que a lei transformou a corporação em uma “pessoa” para compensar o desaparecimento das pessoas reais que a constituíam, a campanha da AT&T atribuiu à companhia valores humanos no esforço de diminuir as suspeitas sobre sua entidade desalmada e desumana. Entre 1908 e o final dos anos 1930, a AT&T autoproclamou-se ” amiga e vizinha” e procurou atribuir a si mesma uma feição humana utilizando pessoas da própria empresa nas campanhas. Empregados, sobretudo telefonistas e funcionários que faziam a manutenção dos cabos, apareciam com frequência nos anúncios da companhia, assim como acionistas.
Outras grandes corporações logo seguiram o caminho da AT&T. A General Motors, por exemplo, usou propagandas que, nas palavras da agencia responsável, visavam “personalizar a instituição chamando-a de família”. “A palavra ‘corporação’ é fria, impessoal e objeto de mal-entendidos e de falta de confiança”, ressaltou Alfred Swayne, o executivo da GM responsável pela propaganda institucional na época, mas “Família” é pessoal, humano, amigável. Essa é a nossa visão da General Motors- um grande lar agradável.
No final da Primeira Guerra Mundial, algumas das principais empresas norte-americanas, entre elas General Electric, Eastman Kodak, National Cash Register, Standard Oil, U.S. Rubber e Goodyear Tire &Rubber Company, ocupavam-se em criar a imagem de benevolentes e socialmente responsáveis. O “Novo Capitalismo”, termo utilizado para descrever a tendência, amenizava a imagem das corporações.
Enquanto os cidadãos exigiam que o governo colocasse rédeas no poder corporativo e a militância trabalhista aumentava com o retorno dos veteranos da Primeira Guerra Mundial que haviam arriscado a vida como soldados e insistiam em um tratamento melhor como trabalhadores, os defensores do Novo Capitalismo tentavam mostrar que as corporações podiam ser boas sem a pressão coercitiva do governo ou dos sindicatos.
A responsabilidade social corporativa floresceu novamente nos anos 1930 quando as corporações sofreram com a opinião publica contraria a elas. Naquele tempo, muitas pessoas acreditavam que a ganância e a má administração corporativa haviam causado a Grande Depressão. Elas partilhavam da visão do juiz Louis Brandeis, expressa em 1933 em um julgamento da Suprema Corte, de que as corporações eram ” Frankensteins” capazes de fazer o mal. Em resposta, os lideres empresariais abraçaram a idéia da responsabilidade social corporativa. Eles acreditavam que era a melhor estratégia para restaurar a fé das pessoas nas corporações e reverter sua crescente fascinação pelo governo.
Gerard Swope, então presidente da General Electric, deu voz a um sentimento comum entre os grandes executivos quando, em 1934, disse que “a indústria organizada deveria sair na frente, reconhecendo sua responsabilidade para com seus empregados, a sociedade e os acionistas mais do que a sociedade democrática deveria agir por meio de seu governo”.
Como elas tinham acumulado tal poder sobre a sociedade, as corporações e os homens que as administravam agora eram obrigados a servir aos interesses da sociedade como um todo, assim como os governos, e não só aos de seus acionistas. O professor Edwin Dodd escreveu em 1932 no Harvard Law Review: “O desejo de manter os atuais poderes [os] encorajou a adotar e a disseminar a idéia de que são guardiões de todos os interesses afetados pelas corporações e não são meros serviçais de seus proprietários ausentes”.
Apesar dos apelos dos lideres corporativos de que eram capazes de regular a si mesmos, em 1934 o presidente Franklin D. Roosevelt criou o New Deal, um pacote de reformas reguladoras destinado a restabelecer a saúde econômica pela restrição dos poderes e das liberdades das corporações, entre outras coisas. Como primeira tentativa sistemática de regulamentar as corporações e como fundação do moderno estado regulador, o New Deal foi criticado por muitos homens de negócios da época e até incitou um pequeno grupo a tramar um golpe para derrubar a administração de Roosevelt. Apesar do fracasso do golpe, este refletia a profunda hostilidade que muitos homens de negócios sentiam por Roosevelt. No entanto, o espírito do New Deal e muitas de suas normas reguladoras prevaleceram. Durante a Segunda Guerra Mundial, o pós-guerra, os anos 1960 e 1970, o crescente poder das corporações foi compensado, pelo menos em parte, pela expansão crescente das regulações governamentais, dos sindicatos e programas sociais.
Então, assim como cem anos antes as maquinas a vapor e as ferrovias junto com as novas leis e ideologias haviam criado a besta corporativa, uma nova convergência entre tecnologia, legislação e ideologia – a globalização da economia – reverteu a tendência contra o grande poder regulador das corporações e impulsionou a corporação a ter poder e influencia sem precedentes.
Em 1973, a economia foi abalada pelo aumento do preço do barril de petróleo gerado pela criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que funcionava como um cartel para controlar o suprimento mundial de petróleo. O aumento do desemprego, a inflação galopante e a recessão profunda vieram logo a seguir. As políticas comerciais correntes, que, fiéis às suas raízes no New Deal , favoreciam a regulação e outros tipos de intervenção por parte do governo, sofreram ataques sistemáticos por sua inabilidade em lidar com a crise. Os governos em todo o Ocidente começaram a adotar o neo liberalismo, que, assim como o laissez-faire do passado, pregava a liberdade econômica para indivíduos e corporações e determinava um papel limitado para o governo na economia. Quando Margareth Thachter tornou-se primeira-ministra do Reino Unido em 1979 e, logo depois, Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos em 1980, estava claro que a era da economia inspirada em ideias e políticas do New Deal havia chegado ao fim. Durante as duas décadas seguintes, os governos adotariam com crescente vigor as principais políticas do neoliberalismo de desregulação, privatização, corte dos custos e redução da inflação. No começo dos anos 1990, o neoliberalismo tinha se tornado um dogma econômico.
Enquanto isso, inovações tecnológicas em transportes e comunicações aumentaram profundamente a portabilidade e a mobilidade das corporações. Jatos maiores e mais rápidos e novas técnicas de embarque de containers( que permitiram a tranqüila integração do transporte marítimo às redes rodoviária e ferroviária) diminuíram os custos e aumentaram a velocidade e a eficiência do transporte. Da mesma maneira, as comunicações melhoraram com inovações como redes de telefonia a longa distancia, o telex, o fax e, mais recentemente, a criação da Internet. As corporações, não mais restritas a suas jurisdições originais, agora podiam correr o mundo em busca de lugares para a produção de bens e serviços a preços consideravelmente mais baixos. Elas podiam contratar mão-de-obra em países pobres, onde ela é mais barata e as exigências ambientais são mais brandas, e vender seus produtos em países ricos, onde as pessoas tinham dinheiro disponível. Aos poucos as pesadas tarifas diminuíram desde 1948, quando o Acordo Geral de Tarifas e Comércio ( conhecido pela sigla inglesa GATT) foi introduzido, permitindo que as corporações aproveitassem a recém-descoberta mobilidade sem sofrer penalidades financeiras.
Livres de seus vínculos locais, as corporações agora podiam ditar as políticas econômicas dos governos. Assim como explicou Clive Allan, vice-presidente da Nortel Networks, uma importante companhia canadense de alta tecnologia, as companhias ” não devem obediência ao Canadá […] Só porque nós [ Nortel Networks] nascemos aqui não significa que ficaremos aqui […] O lugar tem que continuar atraente para que tenhamos interesse em ficar aqui”. Para continuar atraente, ou seja, manter os investimentos dentro de suas jurisdições ou para trazer novos, agora os governos tinham que competir entre si para convencer as corporações de que eles ofereciam as melhores políticas para os negócios. Como resultado dessa disputa, os governos diminuíram as regulações – especialmente aquelas que protegiam os trabalhadores e o meio ambiente – reduziram os impostos e recuaram em programas sociais, sendo muitas vezes negligentes com as consequências.
Com a criação da Organização Mundial do Comercio (OMC) em 1993, a lógica desreguladora da economia globalizada agravou-se. Expedindo ordens para reforçar os padrões já existentes do GATT e criar novos para barrar as medidas reguladoras que poderiam restringir o fluxo do comercio internacional, a OMC tornou-se um entrave significativo à soberania das nações.
Quando a ENRON faliu e a participação da empresa de contabilidade Arthur Andersen em seus delitos foi revelada, as pessoas exigiram uma melhor supervisão reguladora sobre as empresas de contabilidade. No entanto, poucos na época sabiam que o governo norte-americano, por ser membro da OMC, já tinha renunciado a parte de sua autoridade para resolver o problema.
A OMC criou, no final da década de 1990, uma serie de “medidas disciplinares” para assegurar que os estados membros não regulariam a contabilidade de modo “mais restritivo ao comercio do que […] o necessário para atingir um objetivo legitimo”. Em 1998, os estados membros, incluindo os Estados Unidos, concordaram em ser fieis a essas novas regras, que só entrariam em vigor em 2005, e assim submeter-se a padrões impostos, e logo deliberados, por uma instituição externa e antidemocrática.
Quando as medidas disciplinares começaram a ser cogitadas, os representantes norte-americanos questionaram os funcionários da OMC se uma lei que proibisse as empresas de contabilidade de trabalhar tanto como consultores quanto como auditores para uma mesma companhia os contrariaria – uma lei que poderia ajudar a impedir outro desastre como o ENRON/Andersen e que havia sido colocada em pratica recentemente como parte do Sarbanes-Oxley Act de 2002. A regulação da contabilidade não é a única área em que a OMC teve autoridade para restringir as escolhas políticas dos governos. Em diversas ocasiões a organização exigiu que nações, sob a ameaça de penalidades,mudassem ou revogassem leis criadas para proteger o meio ambiente, os consumidores e outros interesses públicos. Em um caso, por exemplo, uma lei norte-americana que bania a importação de camarões de produtores que se recusassem a usar mecanismos que evitassem a captura acidental de tartarugas marinha foi condenada por violar padrões da OMC; em outro caso, uma medida da União Européia que bania a produção e a importação de carne bovina de animais tratados com hormônios sintéticos recebeu tratamento semelhante.
Como acontece com qualquer conjunto de padrões legais, as regras da OMC exercem maior influencia por meio de canais informais.
Os governos também podem usar normas da OMC para pressionar outros países a mudar suas políticas, ameaçando com queixas na OMC caso eles se recusem a fazê-lo – assim como os Estados Unidos e o Canadá fizeram a União Europeia recuar nas propostas de regulamentação que impediriam a importação de pele de animais pegos em armadilhas e de cosméticos testados em animais.
Os ministros do Comercio que representam os estados membros em geral estão “bem alinhados com os interesses comerciais e financeiros dos ministros dos países industrialmente desenvolvidos”, como ressalta Joseph Stiglitz, economista e ganhador do prêmio Nobel, e tornam-se alvos fáceis para a influencia das corporações.
“Não queremos ser a namorada secreta da OMC, nem devemos entrar na OMC pela entrada de serviço” é como um membro da Câmara Internacional de Comercio, um grupo com grande influencia na OMC, descreve a relação especial entre sua organização – e podemos inferir, dos grupos industriais em geral – e a OMC.
Durante sua existência relativamente recente, a OMC tornou-se um entrave significativo às habilidades das nações de proteger seus cidadãos dos delitos corporativos. Em geral, a globalização da economia, da qual a OMC é apenas um dos elementos, tem aumentado a capacidade das corporações de escapar da autoridade dos governos.
E, de acordo com Samir Gibara, ex-CEO da Goodyear Tire, os governos “tornaram-se impotentes [em relação às corporações] em comparação ao que eram antes. Agora as corporações governam a sociedade, talvez mais do que os próprios governos; ironicamente, ainda assim é seu próprio poder, muito do qual ganho por meio da globalização da economia, que as torna vulneráveis. Assim como acontece com qualquer instituição dominante, a corporação agora atrai desconfiança, medo e exigências de responsabilidade de um publico cada vez maior. Os atuais lideres corporativos entendem, assim como seus antecessores, que é preciso esforço para reconquistar e manter a confiança do publico. E eles, como seus antecessores, buscam suavizar a imagem das corporações apresentando-as como humanas, benevolentes e socialmente responsáveis.
“É absolutamente fundamental que a corporação dos dias de hoje tenha tantas características humanas e pessoais como quaisquer outras” diz o relações públicas Chris Komisarjevsky, CEO da Burson-Marsteller. A corporação inteligente entende que as pessoas fazem comparações em termos humanos […] porque é assim que as pessoas pensam, nós pensamos em termos que muitas vezes são muito, muito pessoais[…] Se você caminhar pela rua com um microfone e uma câmera e parar [pessoas] na rua[…] elas vão descrever [as corporações] em termos muito humanos.
Hoje as corporações usam o branding ( brand é marca; branding é criar/fazer a marca)para criar personalidades únicas e atraentes para si mesmas. O branding vai além das estratégias criadas para simplesmente associar as corporações aos seres humanos de verdade. As identidades de marca das corporações são “personificações” de “quem elas são e de onde vieram”, diz Clay Timon, presidente da Landor Associates, a maior e mais antiga empresa de branding. “Magic Family” da Disney e “Invent” da Hewlett-Packard são alguns exemplos do que Timon chama “condutores de marca”. ” As corporações, como marcas […] têm […] alma[s]”, diz Timon, o que permite que criem “ligações intelectuais e emocionais” com os grupos dos quais dependem, como consumidores, empregados, acionistas e órgãos reguladores.
Timon aponta os condutores de marca da Landor para a British Petroleum- ” progressista, desempenho, verde, inovadora” – como evidências de como o ambiente corporativo e a responsabilidade social estão emergindo hoje como os temas chave do branding.” Por necessidade”, Timon diz, “as companhias, quer queiram, quer não,precisaram aceitar a responsabilidade social”. E isso é em parte resultado de seu novo status de instituição dominante. Agora elas precisam mostrar que merecem ficar livres das restrições governamentais e, de fato, participar da administração da sociedade”.
A partir de meados dos anos 1990, demonstrações em massa contra o poder e os excessos corporativos sacudiram cidades norte-americanas e europeias. Os manifestantes, parte de um movimento da “sociedade civil” mais amplo, que também incluía organizações não governamentais, grupos comunitários e sindicatos, tinham como objetivo os danos que as corporações causaram aos trabalhadores, consumidores, comunidades e ao meio ambiente. Suas preocupações eram diferentes das que se seguiram ao escândalo da ENRON, em que o mais importante era a vulnerabilidade dos acionistas perante administradores corruptos. Mas os dois grupos tinham algo em comum: ambos acreditavam que a corrupção tinha se tornado uma perigosa mistura de poder e irresponsabilidade. Hoje a responsabilidade social corporativa é oferecida como resposta a essas preocupações.
Hoje em dia, os lideres empresariais dizem que suas companhias se preocupam com outras coisas além de lucros e prejuízos., que se sentem responsáveis pela sociedade como um todo, não apenas por seus acionistas. A responsabilidade social corporativa é sua nova doutrina, uma maneira consciente de corrigir as visões da corporação que antes eram inspiradas pela ganância. Apesar dessa mudança, a corporação em si não mudou. Ela continua, assim como era na época de suas origens em meados do século XIX, sendo uma instituição de negócios moderna, uma “pessoa” oficializada e criada para valorizar seus próprios interesses e ignorar preocupações morais. Se ela fosse um ser humano, muitas pessoas achariam sua “personalidade” repugnante, até mesmo psicopata, mas curiosamente aceitamos que a instituição mais poderosa da sociedade seja assim.
Na verdade, todas as sociedades com capital aberto ao investimento publico tem a mesma personalidade, até mesmo as mais respeitadas e socialmente responsáveis, como a Pfizer Inc ( lembra do Caso Viox?)
Todos os anos, a empresa doa centenas de milhões de dólares em produtos e dinheiro pelo mundo, fazendo dela, como ela mesmo reivindica, ” uma das companhias norte-americanas mais generosas”. Hank Mc Kinnell, presidente e CEO da Pfizer, tem orgulho especial pelo trabalho da companhia para o fim do tracoma, uma infecção que cega de 8 a 10 mil pessoas todos os anos. A Pfizer produz o Zithromax, um remédio que previne o tracoma com apenas uma dose por ano, e o doa a países africanos.
As corporações sempre foram filantrópicas. Elas sempre fizeram doações para a caridade, patrocinaram times de pequenas divisões e ajudaram a construir teatros. Tradicionalmente, tal generosidade é praticada em silêncio e é periférica ao objetivo principal de fazer dinheiro. Hoje, no entanto, grandes companhias como a Pfizer têm colocado as boas ações corporativas no centro de seus planos de negócios – business plans. Agora é comum esperar das corporações que façam o bem, não apenas os bens; que busquem valores, não apenas o valor do dinheiro; e que ajudem a fazer do mundo um lugar melhor.
Agora, as corporações vangloriam-se de suas iniciativas sociais e ambientais em seus websites e em seus relatórios anuais. As revistas e os jornais de economia publicam vários artigos sobre responsabilidade social e classificam as corporações de acordo com suas boas ações.
A responsabilidade social está em pauta em todos os pontos de encontro dos homens de negócios – no Fórum Econômico Internacional em Davos, Suíça, em encontros ministeriais da OMC, em conferencias e cúpulas de comercio internacional e de investimentos – , e as corporações competem entre si por um nível moral cada vez maior.
Recentemente, em Nova York, centenas de CEOs das maiores corporações do mundo encontraram seus pares provenientes de ONGs como o Greenpeace e a Anistia Internacional e embaixadores para assinar uma promessa de aderir aos princípios gerais da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Até o presidente Bush passou a dizer que a responsabilidade corporativa é uma qualidade administrativa fundamental, até mesmo uma obrigação com a pátria. ” Os Estados Unidos estão adentrando uma era de responsabilidade, é uma cultura readquirindo o sentido de responsabilidade pessoal”, disse ele a um grupo de lideres empresariais em um discurso sobre a falência da ENRON, e “essa nova cultura deve incluir um sentimento de responsabilidade corporativa renovado […] As relações comerciais, como as relações humanas, são construídas sobre uma fundação de integridade e confiança”.
No entanto, nem todo mundo está convencido sobre as virtudes da responsabilidade social corporativa. Milton Friedman, por exemplo, ganhador do prêmio Nobel e um dos mais conceituados economistas do mundo, acredita que o novo moralismo comercial é, na verdade, imoral. Friedman acha que as corporações são boas para a sociedade( da mesma maneira que o governo é ruim). No entanto, ele tem restrições quanto à idéia de que as corporações deveriam tentar fazer o bem para a sociedade. ” A corporação é propriedade dos acionistas”, ele me diz. “Seus interesses são os interesses dos acionistas. Mas, além disso, ela deveria gastar o dinheiro dos acionistas para propósitos que considera de responsabilidade social, mas que nada têm a ver com seus objetivos? Eu diria que a resposta é não”. Há, no entanto, uma “responsabilidade social” para os executivos corporativos, acredita Friedman: eles devem fazer o máximo de dinheiro para seus acionistas. Esse é um imperativo moral. Executivos que escolhem objetivos sociais ambientais em detrimento dos lucros – que tentam agir moralmente- são, na verdade, imorais.
Há, no entanto, uma instância em que a responsabilidade social corporativa pode ser tolerada, de acordo com Friedman – quando ela não é sincera. O executivo que trata os valores sociais e ambientais como meios para maximizar a riqueza dos acionistas – e não como um fim em si mesmo – não faz nada errado. É como ” colocar uma garota bonita na frente de um automóvel para vende-lo” ele me diz. “Isso não é feito para vender beleza. É para vender carros.” Boas intenções, assim como garotas bonitas, podem ajudar a vender bens. É verdade, Friedman reconhece, que essa visão puramente estratégica da responsabilidade social reduz grandiosos ideais a uma “fachada hipócrita”. Mas a hipocrisia é virtuosa quando serve aos objetivos. A virtude moral é imoral quando não serve.
Peter Drucker, o guru de todos os gurus de administração, que acredita que Friedman é “provavelmente o maior economista vivo”, concorda com sua visão de que a responsabilidade social corporativa é uma perigosa distorção dos princípios administrativos. “Se você achar um executivo que deseja assumir responsabilidades sociais, mande-o embora. Rápido”, diz Drucker. A professora da Escola de Administração de Harvard Debora Spar insiste que as corporações ” não são instituições criadas para ser entidades morais […] Elas são instituições que na verdade têm apenas uma missão, que é a de gerar lucros para os acionistas”. E Noam Chomsky – o rival intelectual e ideológico de Friedman – compartilha de sua visão de que as corporações devem ” se preocupar apenas com seus acionistas e […] não com a comunidade, com os funcionários ou com qualquer outra coisa”.
As corporações foram criadas pela lei e por ela imbuídas de um propósito. A lei dita o que diretores e gerentes podem fazer, o que não podem fazer e o que devem fazer. E, pelo menos nos Estados Unidos e em outros países industrializados, a corporação, assim como criada pela lei, se parece muito mais com o ideal de instituição de Milton Friedman: ela força os executivos a priorizar os interesses de suas companhias e acionistas acima de todos os outros e os proíbe de serem socialmente responsáveis – pelo menos verdadeiramente responsáveis.
Henry Ford acreditava que a Ford Motor Company poderia ser mais do que apenas uma maquina de gerar lucros. Ele pagava aos empregados salários substancialmente mais altos do que a media da época e agraciava seus consumidores com reduções anuais no preço dos carros Modelo T. Em 1906, John e Horace Dodge ajudaram Ford a montar sua companhia com um investimento de 10.500 dólares. Eles eram os maiores acionistas. Os irmãos também se comprometeram a fabricar componentes exclusivamente para a Ford em sua loja de maquinas em Chicago. Em 1916, eles planejavam criar sua própria empresa automobilística, e esperavam financiar a empreitada com os dividendos trimestrais de suas ações da Ford, mas foram impedidos pela decisão de Ford de cancelar os dividendos e reverter o dinheiro para os clientes em forma de futuras reduções nos preços dos automóveis Modelo T. Os irmãos Dodge levaram Ford aos tribunais. Eles argumentaram que os lucros pertenciam aos acionistas e que Ford não tinha o direito de dar o dinheiro aos clientes, apesar de suas boas intenções. O juiz concordou. Ele restabeleceu os dividendos e repreendeu Ford – que disse perante o tribunal que “os negócios são um serviço, não uma mina de ouro” – por esquecer que ” um negócio corporativo é organizado e administrado essencialmente para gerar lucros para os acionistas” e que ele não podia ser administrado “para eventual beneficio dos acionistas e para o objetivo principal de beneficiar outros”.
Dodge versus Ford ainda representa o principio legal de que gerentes e diretores têm o direito legal de colocar os direitos dos acionistas acima de tudo e não têm autoridade legal para servir a nenhum outro interesse – o que veio a ser conhecido como principio ” do melhor interesse da corporação”.
O principio do “melhor interesse da companhia”, que agora faz parte da legislação corporativa na maioria dos países, responde à preocupação de Adam Smith em 1776, ao obrigar os tomadores de decisão corporativos a sempre agir de acordo com os melhores interesses da corporação e, consequentemente, dos acionistas. A lei proíbe qualquer outra motivação para suas ações, seja ajudar os trabalhadores, melhorar o meio ambiente, seja ajudar os consumidores a economizar dinheiro. Eles podem fazer essas coisas com seu próprio dinheiro, como cidadãos.
Assim, a responsabilidade social corporativa é ilegal – pelo menos quando é autentica. Isso quer dizer que as corporações que hoje abraçam a responsabilidade social – Pfizer, Ford, Goodyear, BP, para citar algumas – estão fora da lei? Não exatamente. Lembre-se da crença de Milton Friedman de que a responsabilidade social pode ser tolerada quando a serviço do interesse corporativo. Nesse ponto, a legislação concorda com ele novamente.
Em 22 de abril de 1999, o Dia da Terra, no edifício das Nações Unidas na cidade de New York, Sir John Browne, presidente da BP, a segunda maior companhia petrolífera do mundo e a maior fornecedora de gás e combustível dos Estados Unidos, recebeu um prêmio.
Standard Oil
Em 1911, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a Standard Oil, que na época detinha 64% do mercado, se originara de praticas ilegais de monopólio e ordenou que ela fosse desmembrada em 34 novas companhias. Isto incluiu, entre outras, Continental Oil que veio a ser Conoco; Standard of Indiana que veio a ser a Amoco; Standard of Califórnia que veio a ser Chevron; Standard of New Jersey, que veio a ser a Esso ( depois Exxon); Standard of New York, que veio a ser Mobil; e Standard of Ohio, que veio a ser Sohio.
Após a divisão da Standard Oil, provocada pela lei antitruste de Sherman, muitas novas companhias petrolíferas foram criadas. Sete delas formaram o grupo conhecido como as Sete irmãs. Com o seu controle sobre a produção de petróleo, refino e distribuição, elas estavam aptas a tomar vantagem sobre a crescente demanda por petróleo e formar altos lucros. Eram muito organizadas e formavam um forte cartel, tendo forte influência sobre os grandes países produtores de petróleo. Foi somente quando os países árabes começaram a tomar o controle sobre os preços e a produção, formando a OPEP, em 1973, que o poder das sete irmãs passou a declinar.
As companhias foram:
Standard Oil of New Jersey (Esso). Mais tarde, Exxon, e atualmente, ExxonMobil.
Royal Dutch Shell. Atualmente chamada simplesmente de Shell.
Anglo-Persian Oil Company (APOC). Mais tarde, British Petroleum. Depois, BP Amoco. Atualmente é conhecida pelas iniciais BP.
Standard Oil of New York (Socony). Mais tarde, Mobil, que fundiu-se com a Exxon, formando a ExxonMobil.
Texaco. Fundiu-se com a Chevron, criando a ChevronTexaco de 2001 até 2005, quando o nome da companhia voltou a ser Texaco.
Standard Oil of California (Socal). Atualmente a Chevron.
Gulf Oil. Absorvida por várias empresas.
Assim, as companhias que ainda existem hoje são: Esso, Chevron, Shell, Texaco e BP.
Surpreendentemente, Browne, líder de uma empresa desprezada pelos ambientalistas, estava nas Nações Unidas para receber um prêmio pela liderança ambiental – “espantosa” liderança, segundo Denis Heyes, cuja coalizão de grupos ambientalistas, a Earth Day Network, tinha se juntado às Nações Unidas para lhe prestar homenagem. Ele faz discursos eloqüentes e inspiradores, como o proferido nas Nações Unidas quando recebeu seu prêmio. “Estamos em um momento histórico, no limiar de um novo século”, começou seu discurso. ” Há um sentimento de agitação sobre o novo século e, claro, muitos dos medos surgem dos desafios ambientais ainda sem solução […]Eu sei que há uma visão de que os negócios são a simples causa de muitos dos problemas ambientais, mas eu espero que estejamos caminhando para ultrapassar esse argumento […] Temos de ajudar as pessoas a transcender a difícil troca – crescimento econômico e poluição […] ou preservação do meio ambiente sem crescimento. É uma troca inaceitável.
Na ocasião desse discurso em 1999, muitas pessoas do setor ainda consideravam Browne um excêntrico, um dissidente. Um ano depois ele se tornaria “o dono do gás e do petróleo”, segundo Jim Gray, petroleiro de Calgary, que presidiu a World Petroleum Conference 2000 e convidou-o como um dos principais oradores.
“Os negócios podem ser mais do que apenas lucros?” pergunta um anúncio da BP inspirado em Browne. “Nós achamos que sim”. A visão de Browne sugere que as corporações, e aqueles que as administram, podem ter uma preocupação autentica com outros valores além de apenas o lucro. Ainda assim, é exatamente isso que a lei proíbe, ao menos quando tal preocupação interfere na rentabilidade. Na verdade, a questão é se um negócio pode ser menos do que apenas lucros. Será que a BP não está apenas “Beyond Petroleum” ( Além do Petróleo), um inteligente trocadilho usado em seus anúncios, mas também “Beyond Profit” (Além dos Lucros)? Ela pode sacrificar seus próprios interesses e os de seus acionistas para atingir objetivos ambientalistas e sociais?
Há algum tempo Norma Kassi viajou de Old Crow, uma remota vila do território canadense de Yukon a 100 quilômetros ao norte do Circulo Polar Ártico, para Londres, Inglaterra, para participar do encontro anual da BP. Seu único objetivo era tentar impedir a companhia de “vir para o Ártico para nos destruir”. Kassi é membro da nação Gwich’in, uma população aborígene cujas dezessete vilas, construídas milhares de anos atrás, estão espalhadas pela fronteira entre Estados Unidos e Canadá. Ela acredita que a perfuração das encostas da planície litorânea do Ártico acabe com o rebanho de caribus do Porcupine e, com isso, com o modo de vida de mais vinte mil anos de seu povo.
Enormes reservas naturais de petróleo e gás natural devem estar logo abaixo da planície litorânea, e as companhias que garantirem o direito de exploração e perfuração da área podem esperar enormes lucros. A BP é uma provável candidata a esse privilegio se o governo norte-americano acabar com a suspensão de perfuração na área.
Na primavera, os rebanhos percorrem cerca de 650 quilômetros atravessando montanhas, rios, tundras, passando pelas vilas Gwich’in estrategicamente localizadas ao longo da trilha dos caribus, para que as fêmeas possam dar à luz seus filhotes na planície litorânea. Os Gwich’in dependem do rebanho de caribus para sobreviver, como têm sido há milhares de anos. E não apenas para alimento e vestimenta, mas sua vida cultural e espiritual também depende da migração anual dos rebanhos.
Muitos cientistas concordam com os Gwich’in sobre o fato de que o empreendimento na planície litorânea muito possivelmente resultaria em consequências drásticas e irreversíveis para os Gwich’in e para os caribus. Eles dizem que os caribus seriam forçados a ir para as montanhas adjacentes, onde os recém-nascidos poderiam ser mortos por predadores e pela fome.
Desse modo, centenas de cientistas se juntaram aos ambientalistas, a alguns políticos norte-americanos, ao governo canadense e aos Gwich’in para exigir a aplicação do principio de precaução – um principio internacional que proíbe atividades que possam prejudicar pessoas ou o meio ambiente de forma irreversível, mesmo que não haja provas definitivas de que o prejuízo vai ocorrer – para impedir a exploração e a perfuração na planície litorânea.
Sir John Browne é um dos grandes defensores do principio de precaução no mundo atualmente. Enquanto outros lideres da indústria petrolífera rejeitaram o Protocolo de Kyoto, citando a falta de provas de que as emissões de gases causadores do efeito estufa sejam as causadoras do aquecimento global, Browne evocou o principio de precaução para defendê-lo.
John Browne pode ser um desertor. Ele pode até ser um dos mais sinceros defensores da responsabilidade social nos grandes negócios da atualidade, mas não um radical nem um fora-da-lei.
Nas palavras dele, a responsabilidade social da BP é um “bom negócio”, “movida pela realidade comercial prática” e “pela lógica teimosa dos negócios”. As boas ações da companhia são “de interesse direto de nosso negócio”, “não são atos de caridade, mas o que poderia ser chamado de interesse próprio consciente”, “friamente realista”. ” O teste fundamental para qualquer companhia é o desempenho. Esse é o imperativo” diz Browne.
Por dedução, a responsabilidade social não é apropriada quando pode minar o desempenho da companhia. É por isso que a BP precisa perfurar a planície litorânea se isso é mais benéfico – leia-se rentável – para a companhia a longo prazo, quando se leva em consideração todos os fatores. No léxico dos tomadores de decisão da corporação, não há lugar para preocupações com o fim dos rebanhos de caribu, com meio ambiente ártico ou com uma população inteira de aborígenes – pelo menos não como fim em si mesmos. Os custos de suspender a perfuração no local podem ser enormes para a companhia. Os benefícios – a afeição dos consumidores ou a publicidade positiva – provavelmente seriam relativamente pequenos. Se a planície litorânea for aberta para perfuração, a BP certamente estará lá, enquanto a perfuração for lucrativa. Browne realmente não tem escolha nesse caso. Não importa a intensidade e a sinceridade de seu envolvimento pessoal com o meio ambiente, como CEO, Browne tem de colocar os interesses da companhia e de seus acionistas acima de todos os outros.
As pessoas que dirigem as corporações são, em sua maioria, boas, com moral, cidadãos honrados em suas comunidades e quase sempre têm boas intenções e, às vezes, idealistas. Muitos querem fazer do mundo um lugar melhor e acreditam que o cargo que ocupam lhe proporciona a melhor oportunidade de fazê-lo. Mas, apesar das qualidades pessoais e das ambições, sua obrigação como executivos corporativos é clara: sempre têm de colocar os melhores interesses da corporação em primeiro lugar sem se preocuparem com mais ninguém nem com mais nada. O dinheiro que eles administram e investem não é deles. Eles não podem usá-lo para curar os doentes, salvar o meio ambiente nem alimentar os pobres.
A consequência dessa dinâmica, como observou o filosofo moral Alisdair MacIntyre, é que, para executivos corporativos, “as preocupações morais são no máximo periféricas, nos dedicamos [a elas] mais como cidadãos ou como consumidores do que como executivos”. Poucos homens de negócios negariam que suas decisões devem ser feitas principalmente para servir aos interesses da companhia e de seus acionistas.
Anita Roddick, no entanto, acredita que é exatamente esse tipo de bifurcação moral entre o mundo dos negócios e a vida real que corrompeu os homens de negócios e as corporações que eles administram. Como fundadora e presidente da Body Shop, ela revela seu orgulho de ter evitado esse dilema no livro Meu jeito de fazer negócios. Mais recentemente, no entanto, Roddick tem soado menos triunfante: “Os três últimos anos foram os mais dolorosos de minha vida. Perdi a intimidade, a proximidade, deixei de ser ouvida […] É, sem duvida, uma lição de humildade”, ela diz.
Do inicio humilde como fabricante de sabonetes na própria cozinha a presidente da Body Shop e uma das mulheres de negócios mais bem-sucedidas do mundo, Roddick sempre se recusou a separar seus valores pessoais de seu negócio. Foi isso o que tornou seu negócio incomum. A Body Shop tornou-se a plataforma da visão de mundo progressista de Roddick. “Se você tem lucros, todo o propósito do negócio é o de doar, doar aos outros”, ela disse. “Faça o melhor que puder pela comunidade. Seja um guia na comunidade”. Ela criou vários programas, apoiou diversas causas: direitos humanos, meio ambiente, justiça social, direitos das mulheres.
Em 1982, foi realizada uma oferta publica inicial de ações da Body Shop na Bolsa de Valores de Londres. Roddick precisava do dinheiro para crescer, e ir a publico era o melhor jeito de consegui-lo. No entanto, por volta da metade dos anos 1990, a Body Shop, sob pressão dos investidores, teve de rever sua administração e adotar um novo plano de negócios. Patrick Gournay assumiu a presidência da companhia, que foi reestruturada para melhor desempenho e eficiência. Na época, Roddick zelosamente anunciou que as mudanças manteriam intactos os valores e as ações progressistas: “Estão bem enraizados e institucionalizados em tudo o que fazemos”, mas passa a olhar a flutuação inicial das ações ( que inevitavelmente levou à observação dos investidores) como um “pacto com o diabo”: ” Você entra no mercado de ações, e crescer é imperativo – e para os padrões de um pequeno grupo de pessoas, investidores que são jogadores[…] como em um cassino”.
Houve uma crise quando, no rastro dos protestos de Seattle contra a OMC, Roddick, que continuava à frente da companhia, quis que a Body Shop tomasse uma posição contraria à OMC. Era uma oportunidade de fazer o que sempre fizera: usar seu negócio como plataforma para seus valores. Mas a companhia se recusou.
Isto me lembra a citação de M.A. Rothschild – fundador da dinastia de banqueiros Rothschild.
Give me control of a nation´s money supply, and I care not who makes the laws”
[Dê-me o controle do suprimento de dinheiro de uma nação, e não me importa quem faz as leis.]
Roddick então percebeu que sua Body Shop independente, excêntrica e incomum tornara-se comum demais. Ela tinha esperanças de reaver o controle da companhia: “Voltaremos a ser donos do negócio, tenho certeza”, ela disse. E é assim que acredita ser a única maneira de ela e a responsabilidade social corporativa triunfem novamente.
Logo após Roddick ter conversado conosco, a Body Shop foi colocada à venda, um movimento que se fez necessário pela queda dos lucros e do valor das ações. Apesar de ela ter esperança de que um potencial comprador compartilhasse de seus valores sociais, a companhia deixou claro que Roddick e seu marido, Gordon, que juntos detinham 24% da companhia , estariam abertos a todas as ofertas. Segundo o porta-voz da companhia: ” Eles têm consciência de suas responsabilidades legais,morais e financeiras com todos os acionistas”.
A historia de Roddick ilustra como as preocupações morais e os desejos altruístas de um executivo acabam sucumbindo aos principais objetivos da corporação. No entanto, isso não é o pior. As corporações e a cultura que criaram fazem mais do que apenas sufocar boas ações – elas alimentam, e muitas vezes exigem, as más.
A corporação, segundo Roddick, “faz com que as pessoas deixem de ter solidariedade pela condição humana, [ela] nos separa de quem somos[…]. A linguagem dos negócios não é a linguagem da alma nem a linguagem da humanidade. É a linguagem da indiferença; é a linguagem da separação, do segredo, da hierarquia. [Ela] está criando a esquizofrenia em muitos de nós”. Robert Hare, psicólogo e especialista em psicopatologias internacionalmente reconhecido, sobre o assunto reconhece que muitas das atitudes e das ações das pessoas quando desempenham uma função corporativa podem ser caracterizadas como psicopatas. Você tenta “destruir seus adversários ou tenta vencê-los de qualquer jeito”, diz Hare, ” e não fica especialmente preocupado com o que acontece com a população em geral, contanto que as pessoas comprem seu produto”. Ainda assim, apesar de muitas vezes os executivos precisarem manipular e prejudicar os outros na busca dos objetivos da corporação, Hare insiste que eles não são psicopatas. Isso porque eles conseguem funcionar normalmente fora da corporação. ” Eles vão para casa, têm um relacionamento afetuoso com a família, amam os filhos e a esposa, e os amigos são amigos de verdade, não objetos a serem usados.” As pessoas do mundo dos negócios deveriam então se sentir um pouco aliviadas com sua capacidade de compartimentalizar as exigências morais contraditórias da vida corporativa e não corporativa, e é exatamente essa “esquizofrenia”, como Roddick a chama, que os livra de serem psicopatas.
Mas a corporação não pode escapar com tanta facilidade do diagnostico de psicopata. De modo diverso dos seres humanos que a habitam, a corporação está exclusivamente interessada em si mesma e é incapaz de sentir verdadeira preocupação pelos outros em qualquer contexto. Não nos surpreende, dessa forma, que, ao pedirmos ao dr. Hare que aplicasse seu teste de diagnóstico de traços psicopatas à personalidade institucional da corporação, ele tenha descoberto uma grande equivalência. A corporação é irresponsável , diz dr. Hare, porque “na tentativa de satisfazer seus objetivos corporativos, coloca todo mundo em situação de risco”. As corporações tentam “manipular tudo, inclusive a opinião pública”, e elas têm complexo de grandeza, sempre insistindo ” que são a numero um, que são as melhores”. Uma falta de empatia e tendências anti-sociais também são características importantes da corporação, diz Hare. ” O comportamento das corporações indica que, de fato, não se preocupam com suas vitimas”; e elas muitas vezes se recusam a se responsabilizar pelos próprios atos e são incapazes de sentir remorso: ” se [ as corporações] são pegas [ contrariando a lei], pagam multas altas e […] continuam a fazer o que faziam antes. E, na verdade, em muitos casos as multas e as penalidades pagas pela organização são insignificantes se comparadas ao dinheiro que vão ganhar”.
Finalmente, segundo o dr. Hare, as corporações relacionam-se com os outros de forma superficial: “seu objetivo maior é apresentar-se à população de forma atraente [mas] talvez não seja representativa do que realmente é”. Os psicopatas humanos são conhecidos pela capacidade de usar o charme para mascarar suas perigosas personalidades auto-obsessivas. Para as corporações, a responsabilidade social pode ter o mesmo papel. Por meio dela, elas podem demonstrar compaixão e preocupação com os outros quando, na verdade, não têm capacidade de preocupar-se com ninguém nem com nada além de si mesmas.
Recomendo assistir ao filme A Servidão Moderna no Youtube: